quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Poemarma

Que o poema tenha rodas motores alavancas
que seja máquina espectáculo cinema.
Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas.
Que seja um autocarro em forma de poema.

Que o poema cante no cimo das chaminés
que se levante e faça o pino em cada praça
que diga quem eu sou e quem tu és
que não seja só mais um que passa.

Que o poema esprema a gema do seu tema
e seja apenas um teorema com dois braços.
Que o poema invente um novo estratagema
para escapar a quem lhe segue os passos.

Que o poema corra salte pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês

Que o poema se meta nos anúncios das cidades
que seja seta sinalização radar
que o poema cante em todas as idades
(que lindo!) no presente e no futuro o verbo amar.

Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal.

Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua
.
Que seja experimentado muito mais que experimental
que tenha ideias sim mas também pernas
E até se partir uma não faz mal:
antes de muletas que de asas eternas .

Que o poema fique. E que ficando se aplique
A não criar barriga a não usar chinelos.
Que o poema seja um novo Infante Henrique
Voltado para dentro. E sem castelos.

Que o poema vista de domingo cada dia
e atire foguetes para dentro do quotidiano.
Que o poema vista a prosa de poesia
ao menos uma vez em cada ano.

Que o poema faça um poeta de cada
funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo acorde no lusíada
a saudade do novo o desejo de achar.

Que o poema diga o que é preciso
que chegue disfarçado ao pé de ti
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
E que o poema diga: o longe é aqui.

Manuel Alegre

I

Rasgo os muros do infinito,
Nos silêncios que procuro o mundo me aterra,
Não fui eu que pedi esta guerra,
Foi ela que me chegou a cada grito.

A cada grito dos injustiçados desta terra,
Refugiados de outras batalhas perdidas,
Com braços cansados e mãos vencidas,
E um olhar de silêncio como de quem berra.

Berra por todas as almas vendidas,
Sujeitas ao preço vil da escravidão.
E eu lutava se não fosse a maldição
De não conseguir sarar todas as feridas.

As feridas abertas da liberdade,
Que prometeram enquanto me prendiam,
Que prometeram mas apenas vendiam
Em troca da minha dignidade.

Se assim é, antes a morte!

António A